Diálogo Petista 80
A Coordenação Nacional do Diálogo Petista reunida em 27 de julho decidiu publicar um texto de reflexão histórica do companheiro Cláudio Ribeiro, do PT do Paraná, convidado à reunião. Nesta edição da página do Diálogo publicamos a primeira parte dessa contribuição.
Constituinte de 1988:
“Os militares continuam intocáveis”
Quando os constituintes decidiram retirar das Forças Armadas o poder de garantidores da ‘lei e da ordem’, o General Leônidas Pires Gonçalves, porta-voz castrense, ameaçou interromper o processo de construção dispositiva da atual Carta da República. E foi enfático, inflexível.
Por isso, a Assembleia Nacional Constituinte, ameaçada, viu-se constrangida, segundo Jorge Zaverucha, a manter.
“… por meio do artigo 142, o poder soberano e constitucional das Forças Armadas de suspender o ordenamento jurídico sem precisar prestar contas a qualquer outra instância de poder, ou seja, os militares podem dar um golpe de Estado amparado por preceito constitucional.” (1)
Às vésperas da promulgação da Constituição Federal, relembra Zaverucha, o então Deputado Federal Luiz Ignácio Lula da Silva ocupou a tribuna da Casa e afirmou de modo categórico:
“… os militares continuam intocáveis, como se fossem cidadãos de primeira classe, para, em nome da ordem e da lei, poderem repetir o que fizeram em 1964. (…) E o Partido dos Trabalhadores (…) vem aqui dizer que vai votar contra esse texto, exatamente porque entende que, mesmo havendo avanços na Constituinte, a essência do poder, a essência da propriedade privada, a essência do poder dos militares continua intacta nesta Constituinte.” (2)
É este, talvez, o grande e permanente obstáculo para a implantação no País de um Estado verdadeiramente de Direito e Democrático.
Não houve, na realidade, ruptura com o passado nem o passado foi, até hoje, recuperado para a memória histórica dos anos sangrentos e sanguinários sob os quais viveu a sociedade brasileira durante mais de vinte anos; e por esta razão falta ao Brasil uma das características principais do Estado Democrático, a completa separação entre as Forças Armadas e as Polícias Militares, ou seja, entre os que deveriam ser exclusivamente responsáveis pela defesa do País de eventuais guerras externas e a manutenção da ordem interna reservada tão somente às Polícias Militares, é isso que nos ensina tanto Zaverucha quanto todos aqueles que enfrentam a análise da atual Carta Republicana.
A abertura dos governos para eleições gerais não significa, para os eleitos, poder ‘emanado do povo’, mas governos limitados pelos interesses e interessados na manutenção do estabelecimento (lei e ordem e proteção inconfessada da propriedade privada) tutelado pelas Forças Armadas.
Se todo o poder não emana direta ou indiretamente do povo, o parágrafo único do artigo 1º e o artigo 2º da Constituição Federal sofrem tamanha desfiguração diante do artigo 142 que, em linguagem clara e incisiva, o que ensaiam normatizar traduz-se em mera aparência; e isso conduz à convicção de que o conjunto sistêmico da ordem constitucional obstrui a construção real do Estado Democrático de Direito apregoado pela Carta Brasileira no seu artigo 1º.
Quais são as razões desse controle armado? As respostas devem ser encontradas nas raízes reais do regime ditatorial implantado a partir de abril de 1964.
A análise da sociedade brasileira induz algumas conclusões inarredáveis:
1) – No plano da economia:
É falsa a ideia de que o golpe de 1964 cumpria a finalidade de ‘combater o comunismo’. O anticomunismo enraizado na formação militar pelas academias e escolas castrenses foi uma bandeira acenada para encobrir (como na Alemanha de Hitler em relação aos judeus) as finalidades concretas de destruir propostas de reformas do governo Jango Goulart (agrária, monetária, regulação da remessa de lucros, nacionalização ou estatização de empresas multinacionais, etc.) e, acima de tudo, impor uma política de confisco da remuneração do trabalho para alimentar a ganância do grande capital.
Tanto verdadeiro é isso que, mesmo cassando parlamentares, prendendo a delegação chinesa encarregada de negociar tratados comerciais, prendendo e torturando dirigentes comunistas, até fins de 1968 as principais leis foram impostas para, pela primeira vez, arrochar salários e controlar reajustes ou concessões, negociadas, de algumas e pequenas vantagens normativas como, por exemplo, participação nos lucros, a estabilidade no emprego garantida aos 10 anos de trabalho para a mesma empresa, etc.
E tudo começa com a promulgação da Lei nº 4.725, de 13 de julho de 1965, ao ser introduzida a presença do Estado em qualquer tipo de negociação sindical sobre salários para impor, de forma absolutista, um novo período de acumulação do capital combinado com o sistema de concentração de rendas e riquezas.
Quem se dispuser a examinar o curso da legislação sobre salários nos anos de chumbo, pode consultar o resumo em anexo desta empreitada golpista. As leis foram sendo baixadas pelo comando do regime ditatorial sempre no sentido de aprimorar a política econômica de compressão salarial.
A pergunta que fica no ar até hoje: A partir da abertura política iniciada durante o período Geisel, isso mudou? Ou apenas abriu-se a possibilidade de eleições para governos tutelados pelos quartéis?
Quem examinar a fundo esta questão vai constatar, com decepção, que as mudanças não foram, em nenhum momento, estruturais. A política econômica continua alargando os abismos da distribuição de rendas e riquezas e, nos últimos anos, com o peso da enorme carga tributária onerando segmentos de rendimento médio, sobrecarregada com as privatizações de serviços principalmente nas áreas da educação, saúde e previdência, tem-lhes subtraído, e abusivamente, recursos de imenso porte, empobrecendo-os a ponto de transformá-los em vítimas mais agredidas pelo sistema. Esse setor social inclui os trabalhadores remunerados por quantias superiores a 3 salários-mínimos, empregados ou autônomos. E tudo isso para assegurar a meta de concentração de rendas, ainda em vigor nos seus principais alicerces.
Alardar-se-á que nos últimos 10 anos houve uma pequena inversão desse rumo da Economia implantada a partir de 1965 e isto é, em parte, verdadeiro; todavia, o topo da pirâmide social não sofreu nenhum abalo, não foi sequer tocado a distância e continua cada vez mais o principal beneficiário da distribuição desigual e agressiva das riquezas e das rendas.
São inegáveis as medidas de inclusão social no mercado de consumo e, em alguns segmentos dos trabalhadores, as melhorias salariais, o aumento real do salário-mínimo correndo atrás do poder aquisitivo antes desfrutado, o uso da Previdência para distribuir benefícios/rendas; contudo, isso tudo so
mado não sedimenta, nem de longe, ruptura com o regime de acumulação inseparável do capitalismo na sua forma aparentemente liberal dos nossos dias. E não há como negar as diferenças que pendem, positivamente, para os governos liderados pelo PT em comparação com os governos anteriores. Entretanto, não houve, não se conseguiu nenhuma ruptura relevante com o regime econômico herdado.
(continua)