O DIA EM QUE A ESPERANÇA MEIO QUE VENCEU O MEDO
Na avenida Paulista havia uma grande profusão de cartazes, quase sempre nas mãos de jovens, dezenas de milhares com a boca coberta por máscara, mas que falavam para a história. Lembrei de como as manifestações dos estudantes chacoalharam a ditadura, em 1977. A luta é longa, mas aprendemos com os erros
O 29 de maio foi um dia para não esquecer. Foi a maior manifestação desde as eleições há três anos, mas havia poucos parlamentares ou auto ridades, e nenhum líder golpista do “centro democrático”. Foram centenas de milhares pelo Fora Bolsonaro nas capitais e centenas de cidades em todo o país. A surpresa foi tamanha que 32 dos 33 maiores jornais não deram na manchete o fato que a Globo demorou dois dias para destacar.
Na Avenida Paulista havia uma grande profusão de cartazes, quase sempre nas mãos de jovens, dezenas de milhares com a boca coberta por uma máscara, mas que falavam para a história. Um deles: “Meu pai morreu de covid no dia 19 de maio, Fora Bolsonaro!”. Havia vários assim. Que consciência aguda! Não vi nenhum pedindo “união contra o vírus”, ninguém propondo um “Comitê gestor unindo os três poderes e a sociedade civil”, como volta e meia fazem algumas de nossas lideranças políticas e sindicais. Mas, sim, vi um “‘Quem espera nunca alcança’ – Fora Bolsonaro!”. O aforisma, entre aspas na cartolina, me trouxe à lembrança a poesia de Chico Buarque nos anos de chumbo da ditadura.
Nos anos 70 havia mortos e desaparecidos políticos. Havia muito medo, justificado. Mas também havia muitas lideranças políticas acomodadas, esperando algo acontecer (“Abertura”), talvez eleições para melhorar a situação. Mas no meio estudantil, principalmente, as coisas começaram a mudar pouco a pouco. Até que em 1977 a coisa virou quando a juventude saiu às ruas em várias capitais. Um filme coincidentemente hoje em cartaz – “Libelu – Abaixo a Ditadura”, ajuda a relembrar. Inclusive documenta como aquela juventude, num belo dia 23 de agosto surpreendeu boa parte de suas próprias lideranças, extravasando-as – tinham recuado de sair à rua na véspera. O Dia Nacional de Luta assim realizado foi um êxito, apesar da repressão, papel picado dos prédios, buzinas apoiando, lojistas protegendo jovens. O fato assustou a mídia “esclarecida”, a oposição consentida (MDB), além de, obviamente, o vetusto regime militar. O medo começava a ser vencido. O resto da história é mais conhecida, cresceu a luta popular, veio a greve operária no ABC, nasceram as principais organizações de massa hoje existentes.
Neste dia 29 vi o ponto alto da manifestação na passeata de pelo menos 50 mil que desceu da Paulista pela rua da Consolação. Fazia tempo que eu não ouvia buzinas na outra pista saudarem uma passeata. Foi emocionante ver os motoqueiros, motoristas de ônibus e particulares buzinando, não todos, mas muitos, muitos. E a massa devolverem palavras de ordem, bonito de ver a simpatia renovada das ruas com a luta popular. A coisa está virando. Eu estava num cortejo que gritava “Ninguém, ninguém, ninguém aguenta mais! Fora Bolsonaro, e seus generais!”.
Ocorre-me que “a esperança venceu o medo” dia 29. Mas uma vitória parcial. Também tinha vencido em 2002, mas estamos aqui. A luta é longa, aprendamos com os erros, além de louvar os acertos. A luta continua!
Markus Sokol | Economista, é integrante do Diretório Nacional do PT.
Artigo publicado na revista Focus, revista semanal da Fundação Perseu Abramo