Conflito da Marinha com quilombolas na Bahia
Um grito ecoou no evento de regulamentação da Lei Paulo Gustavo, em Salvador, no dia 11 de maio, com a presença de Lula. Enquanto o presidente discursava, a líder quilombola Rose Meire dos Santos Silva reivindicou entregar-lhe uma carta, o que levou Lula a chamá-la ao palco. Muito emocionada e aos prantos ela pediu ajuda “Lula, pelo amor de deus, nosso povo tá morrendo, Lula”.
A carta (#quilomboriodosmacacos) entregue pela coordenadora da Associação dos Remanescentes do Quilombo Rio dos Macacos contém um vivo relato da terrível situação que se encontra esta área titulada como terra quilombola, e um conjunto de reivindicações que vão desde serviços básicos e políticas públicas para as famílias, até o fim da violência por parte da Marinha do Brasil que há décadas promove arbitrariedades como ameaças, agressões e torturas em plena luz do dia contra as famílias que buscam sobreviver defendendo suas terras.
Breve história de um conflito
A área quilombola fica na região metropolitana de Salvador, divisa da capital com o município de Simões Filho. Fazia parte da fazenda de produção de açúcar chamada fazenda Macacos que Coriolano Bahia se dizia proprietário. A promessa de doação de glebas à comunidade que já morava ali nunca se concretizou. Com dívidas tributárias, o Estado expropriou a área. No documento assinado pelo fazendeiro e a prefeitura datado de 1916, consta o registro da presença dos moradores tradicionais, porém desconsiderados para fins de reparação. Em 1960, a área foi doada pela Prefeitura de Salvador à Marinha que construiu uma barragem no Rio dos Macacos e, em 1971, iniciou a construção da Base naval de Aratu (local muito usado por presidentes em feriados).
Nesse processo houve despejos ilegais, ali onde viviam mais de 500 famílias, violências de todo tipo contra a comunidade local que, apesar de ocupante tradicional do local, nunca foi considerada como tal. A Marinha então recorreu à Justiça em 2009 reivindicando a posse da terra, culminando em uma ação de despejo judicial em 2011, o que acarretou uma grande campanha contra essa ilegalidade. Neste mesmo ano, o governo Dilma, através da Fundação Palmares, reconheceu a área como quilombola e solicitou ao INCRA a demarcação da terra que só ocorreu em 2012. Mesmo assim em 2013 veio outra decisão judicial de reintegração de posse, novamente barrada pela mobilização. À época, o governo federal chegou ao ponto de propor deslocar a comunidade para outro espaço, mas a proposta não foi aceita pela comunidade que seria retirada do seu local de direito.
Em 2014, após nova pressão, o INCRA publicou um relatório técnico reconhecendo e demarcando 104 hectares para os remanescentes quilombolas e 196 ha para a Marinha. Porém, a titulação da posse veio em dezembro de 2019 e, só foi assinada na superintendência do INCRA na Bahia em 28 de julho de 2020 (!), fato que foi denominado por Rose como “nossa carta de alforria”. Ainda assim, a pedido da Marinha, uma juíza da 7ª Vara Federal determinou a reintegração de posse da área da barragem do Rio dos Macacos impedindo os moradores de acessar a água, outra vez barrada pela mobilização.
Pedimos socorro
É o grito da comunidade na carta entregue a Lula onde afirma que “há mais de 50 anos viemos sendo torturados pela Marinha”. A situação é realmente calamitosa, pois a comunidade, que atualmente tem mais de 100 famílias, parece viver num campo de concentração. Só há um único acesso à comunidade que é por dentro da Vila naval. Diz a carta: “Perdemos diversas pessoas, nem a própria SAMU pode entrar. Quando passam mal, tem que andar 3,5 km até a portaria principal. Mulheres já deram a luz na lama. O transporte escolar não vem buscar as crianças e por isso elas tem que andar 7 km até a escola, todos os dias”.
A comunidade não tem posto de saúde nem iluminação pública, apesar de que “todos os meses é cobrado em nossa conta de energia”, conseguida pelo programa Luz para Todos, em 2017. As moradias são precárias, sem estrutura digna e os militares impedem qualquer melhoria, inclusive do próprio governo do estado: “Conseguimos ser aprovados no programa Minha Casa Minha Vida, assinamos todos os documentos e ao final disso não conseguimos a efetivação e construção das obras pela falta das vias de acesso e também as inúmeras chantagens da Marinha. Não possuímos água encanada e nem rede de esgoto e saneamento”.
A carta relata casos de violência, perseguições, racismo, ameaças, estupros e assassinatos, como foi com José Isídio Dias, conhecido como Seu Vermelho, liderança local de 89 anos encontrado morto em sua casa com sinais de golpes de machado em novembro de 2019. Terreiros de candomblé, casas de farinhas e casas de moradores já foram demolidas. Em 2014 a própria Rose, seu irmão Edinei Messias e suas duas filhas, “foram torturados, espancados e amarrados com fio em frente à Vila Naval da Barragem, por estarem voltando para as suas residências”. A Marinha inicialmente negou o fato, porém as filmagens trouxeram à tona a verdade, o que levou ao reconhecimento da violência, não obstante nunca terem sidos divulgados os resultados da suposta investigação dos militares.
Até quando?
Os quilombolas afirmam que “já tivemos diversas reuniões e fizemos várias denúncias aos órgãos e secretarias, mas até os dias de hoje nada foi feito”. Rose afirma também que “já entreguei a carta nas mãos de Lula umas duas ou três vezes. Os governos municipais, do estado da Bahia e federal sabem o que está acontecendo. Não é de agora que a gente entrega essa documentação, mas nada foi resolvido.”.
Até quando permanecerá isso? Não há segredo dos fatos, muito menos desconhecimento das autoridades, que justiça seja feita e nosso povo não pode morrer mais. É hora de uma solução que garanta as medidas concretas para que a comunidade tenha paz, melhorias nos serviços públicos, uma vida digna e o fim da violência da Marinha.
O conflito atravessa décadas, incluindo os governos Lula e Dilma, e aterrissa nas mãos de Lula novamente. O caso é um flagrante crime cometido pela Marinha que, ao invés de cumprir o papel de proteção da área marítima da nação, violenta uma comunidade negra que tem o direito legítimo e legal a terra.
Faz-nos lembrar dos recentes abusos e crimes cometidos por militares, em especial sua cúpula de generais, brigadeiros e almirantes que deu na conspiração fascista de 8 de janeiro e, mais recentemente, em escândalos de corrupção, adulteração de cartão de vacina do genocida, perseguições de trabalhadores em empresas públicas etc. Cada vez mais se evidenciam os tentáculos da tutela militar que submete a nação brasileira aos seus interesses subalternos. Isso tem que parar. Marcha soldados de volta ao quartel!
A coisa mais certa tem que ser a coisa mais justa
A entrega da carta no mês de maio faz lembrar, sobretudo, a história de luta do povo negro. A farsa da abolição da escravidão se confirma nos fatos. Como dizia a composição de Lazzo e Jorge Portugal “no dia 14 de maio, eu saí por aí. Não tinha trabalho, nem casa, nem para onde ir. Levando a senzala na alma, eu subi a favela. Pensando em um dia descer, mas eu nunca desci”.
A carta também representa, especialmente, a resistência do povo negro e a esperança de que este governo Lula, eleito após uma dura batalha, tome as medidas necessárias. Como comandante em chefe das Forças Armadas, Lula tem as condições de impedir a violência da Marinha e, de outro lado, enviar o Estado para garantir as políticas públicas para o Quilombo Rio dos Macacos. Certamente, a cúpula das Forças Armadas não gostará, mas terá o apoio do povo trabalhador. A melhor defesa é o ataque. Seguramente, seria uma medida que traria à tona tantas outras lutas pelo direito à demarcação de terras quilombolas interrompidas após o golpe e, possivelmente, seria um alento na trincheira da luta por Reforma Agrária no Brasil.
Este acontecimento de 11 de maio faz-nos ouvir novamente a composição: “Mas minha alma resiste, meu corpo é de luta. Eu sei o que é bom, e o que é bom também deve ser meu. A coisa mais certa tem que ser a coisa mais justa. Eu sou o que sou, pois agora eu sei quem sou eu”.
Lula, atenda o clamor do Quilombo Rio dos Macacos.
Paulo Riela, Membro do Diretório Estadual do PT BA e do Comitê Nacional do Diálogo e Ação Petista