Fala Eliana, filha de Rubens Paiva
Eliana Paiva, uma das filhas do ex-deputado Rubens Paiva, é retratada no filme oscarizado de Walter Salles, “Ainda estou aqui”, assistido por mais de 5 milhões de espectadores. Eliana tinha 15 anos à época do desaparecimento de seu pai, levado por agentes da ditadura militar em janeiro de 1971 para dependências do DOI-COD/RJ, de onde não saiu vivo. Ela e a mãe também foram levadas. O chefe à época era o general José Belham, um dos acusados pelo Ministério Público Federal pelo desaparecimento de Paiva. Ele e outros seguem impunes.
Neste dia 30/3, o DAP convoca todos a se somarem nos atos pelo país exigindo: Punição para Bolsonaro e os generais golpistas! Cadeia para o general José Belhan!
Eliana deu esta entrevista em 10/3 para Paulo Zocchi.
Como você está vivendo a repercussão do filme sobre o desaparecimento de seu pai e a luta de sua família?
Está sendo tudo muito emocionante. Eu vi o filme em Londres (pré-estreia). Eu já chorava antes, chorei na hora em que aparece a Fernanda Montenegro – que fica mais próxima à última Eunice que eu vi, minha mãe já mais velha –, saí do filme e disse: “Não vejo mais”.
Claro, há o filme, e há os fatos reais, o desaparecimento de um preso político, a impunidade da ditadura que afeta o país.
Eunice e Rubens eram pessoas excepcionais. Meu pai era um sujeito muito alegre, muito bom, muito tranquilo, muito engraçado, e ao mesmo tempo muito sério. Os dois tinham relações sociais muito fortes. Isso ajuda bastante. O próprio Waltinho (Walter Salles) conheceu a casa aos 12 anos.
Eu escrevi, na época, uma carta que foi publicada no “New York Times” e na revista “Newsweek” denunciando a situação. Ela também foi para a França, a Itália e a Inglaterra. Acho que foi essa carta que “soltou” a mamãe. A carta foi articulada pelo Raul Ryff, amigo de papai e ex-secretário de imprensa do João Goulart.
Eunice era uma pessoa doce. No filme, ela me dá um tapa. Ali tem uma carga de dramaturgia grande – e que tem que ter! Ela jamais faria isso. A Fernanda Torres é uma Eunice um pouco bruta; ela mesma era bem mais doce.
Você acha que o filme pode ter impacto na vida política nacional?
Parece que está conseguindo mudar um pouco a direção da direita maluca. Agora o Eduardo Bolsonaro ataca o Walter Salles dizendo que ele é um psicopata, e que todo mundo sabe que meio pai foi morto pela VPR (grupo armado de oposição ao regime militar, segundo versão da farsa montada pelo regime, NdE). Fala isso com a maior tranquilidade, como se fosse uma verdade. E parece que tem gente que acredita nisso. Mas se o filme vai conseguir tirar apoio do Bolsonaro, isso vamos ver.
O que hoje se sabe com certeza das condições da morte do seu pai?
Ele foi morto por pancadas. O tal Lobo (médico Amílcar Lobo, ligado à ditadura), que atendeu o meu pai, disse que ele estava muito ruim, e em vez de levarem ele para o hospital, ou executaram ou deixaram ele morrer.
Os guardas da prisão haviam todos sido trazidos do Sul, eram bem jovens e não entendiam como eu, uma menina de 15 anos, poderia estar presa. Começaram a conversar comigo. Eu perguntava da minha mãe e do meu pai. Minha mãe estava duas celas na frente. Ela estava deitada, dura, na cela, porque não sabia o que tinha acontecido com a filha dela. Então, estava tentando ouvir algum ruído meu. Eu disse a um eles: “Vai lá e diga à mamãe que eu estou bem”. Uma certa hora falei a eles: “Meu pai também está preso. Vocês sabem alguma coisa?” Aí ficaram meio atarantados; eram dois ou três meninos, de uns 18/19 anos… Um deles voltou e disse: “Alguém foi levado daqui arrastado durante a noite”. Eu entendi que tinha sido no início da noite.
Agora, se você junta os testemunhos todos, vai ver que ele foi executado.
O crime de tortura e assassinato é imprescritível. O de desaparecimento do corpo é um crime continuado até hoje. O que fazer diante disso?
Você não pode esconder um cadáver de uma família. Temos de seguir nesta trilha. O aspecto jurídico de que não é uma anistia “continuada” é interessante. E é simples: você não pode esconder um cadáver de uma família durante 50 anos.
Dos cinco torturadores, dois estão vivos. O que fazer?
No caso do meu pai, podemos entrar pela questão da ocultação de cadáver. Eles não podem dizer que isso foi “sem querer”. Não, é uma realidade: não podem ocultar um cadáver.
Fonte: jornal O Trabalho