A palavra a Awad Abdelfattah

Artigo publicado no jornal francês Informações Operárias de 21 de dezembro de 2023.


Reproduzimos um artigo de Awad Abdelfattah publicado pelo site Middle East Eye (Mirador do Oriente Médio), em 27 de novembro. Militante palestino do interior, ele é, juntamente com o historiador israelense Ilan Pappé, um dos iniciadores da One Democratic State Campaign – OSDC (Campanha por um Único Estado Democrático).  

Awad Abdelfattah

Relançar a solução de dois estados no meio de um genocídio é um ardil. Para muitos palestinos, falar de uma solução de dois estados ou de qualquer outra solução política para o conflito colonial em curso parece um luxo, dada a necessidade urgente de salvar 2,3 milhões de pessoas em Gaza do ataque maciço de Israel. Pôr termo à guerra genocida de Israel é uma prioridade absoluta para o povo palestino e para todas as pessoas de consciência. Portanto, o novo discurso do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, sobre a ilusão dos dois estados, foi recebido como nada mais que uma distração das atrocidades sem precedentes praticadas por Israel, com o apoio de Washington. 

A retórica estadunidense renovada sobre este assunto, apresentada como uma visão a perseguir após o fim da guerra genocida, está condicionada à concretização do plano militar israelense destinado a expulsar o Hamas de Gaza, não importa o número de civis mortos ou deslocados à força neste processo, ou a amplitude da devastação causada no território. 

Passamos de uma fase, na qual o mantra da solução de dois estados foi usado como cobertura para a colonização israelense da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental, para uma fase que envolve o extermínio dos palestinos em Gaza, que se tornou o maior campo de concentração a céu aberto do mundo. 

Tudo isso é justificado pela necessidade de eliminar o alegado maior obstáculo à paz. É absurdo reunir duas trajetórias tão conflitantes – uma que fala de paz e a outra que envolve o processo em curso, de extermínio de um grupo de pessoas que supostamente se beneficiariam do processo de paz. 

Mas tal proposta não é de forma alguma estranha ao contexto da história dos Estados Unidos, que começou com o extermínio da população indígena e se estendeu ao Iraque e ao Afeganistão no século 21. É intencional, e parte do pressuposto de que o momento é oportuno para implementar um plano cujo principal objetivo é garantir a segurança de Israel e reconstruir as alianças regionais de Washington. 

Uma verdadeira mudança de política? 

O governo dos EUA, atordoado com a operação de tipo “choque e terror” do Hamas, quer tirar partido das debilidades crescentes do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, tendo em conta a sua incapacidade de defender os seus próprios cidadãos e de desmantelar o Hamas, para trazer Israel e a Autoridade Palestina (AP) de volta à mesa das negociações. 

Mas o que significa realmente invocar a solução a dois estados, depois de tantos anos de negligência e da consequente destruição e sofrimento infligido a um povo colonizado? Será que isso se traduzirá numa verdadeira mudança na política dos Estados Unidos? E será a solução de dois Estados ainda uma opção séria ou viável, levando em conta o projeto de colonização enraizado na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental ocupadas, bem como o fanatismo crescente e a tendência ao fascismo exacerbados pela guerra atual? Será a versão de Washington da solução de dois estados a mesma a que aspiram os dirigentes palestinos, e estarão os Estados Unidos dispostos a exercer uma verdadeira pressão sobre Israel? 

O clima que reina no meio da guerra em Gaza e o aumento do ódio entre palestinos e israelenses são extremamente desalentadores. É difícil avaliar até que ponto a fratura se aprofundou, ou mesmo se qualquer discussão sobre uma solução política que garanta sequer um mínimo de direitos ao povo palestino é pertinente nestas circunstâncias.

A sociedade israelense sairá provavelmente desta guerra ainda menos disposta a aceitar qualquer compromisso com os palestinos, especialmente porque o regime israelense apresentou o ataque de 7 de outubro como estando desligado das graves injustiças históricas que infligiu aos palestinos. 

Pior ainda foi a remobilização da sociedade israelense, induzida erradamente a aprovar uma mentalidade manifestamente genocida enraizada na ideologia sionista. As políticas coloniais de Israel desumanizam o povo palestino, considerando, desde 1948, o apagamento da cultura e da história palestinas como o cumprimento de uma promessa divina ou de um imperativo nacional. 

Nos últimos anos, alguns setores da sociedade israelense e os grandes meios de comunicação tornaram-se cada vez mais racistas e insensíveis ao sofrimento palestino. É por isso que os palestinos intensificaram a sua luta de resistência, apesar dos enormes sacrifícios. Esta luta pela justiça, pela descolonização e pela libertação não terminará; e é por isso que os palestinos de Gaza se recusam a abandonar a sua pátria, mesmo após dezesseis anos de um cruel cerco israelense.

Pré-julgamento tendencioso 

Mesmo após o fim da guerra atual, o conflito no seu conjunto continuará enquanto não houver uma solução justa. Quando esta série de combates se acalmar, começará a diplomacia – mas este processo será difícil e prolongado e constituirá um grande desafio para os palestinos, pois os Estados Unidos nunca foram um mediador imparcial. 

Se Israel conseguir enfraquecer o Hamas e expulsá-lo do poder em Gaza, como pretende fazer, os Estados Unidos terão que assegurar a substituição do governo israelense de extrema-direita por um governo disposto a negociar com a Autoridade Palestina, que atua como subcontratante da ocupação israelense. 

Mas é difícil prever uma mudança real na posição de Israel sobre os direitos dos palestinos, em um contexto de iminentes conflitos internos em torno do projeto de reforma judicial, que provavelmente serão exacerbados após o enorme fiasco de Netanyahu em 7 de outubro. Tal mudança só se produzirá com uma pressão interna contínua, a saber, uma resistência conjunta, palestina e progressista, e uma verdadeira pressão internacional. 

Os palestinos sairão desta guerra tendo sofrido mais uma terrível catástrofe humanitária, de uma dimensão sem precedentes desde a Nakba de 1948. No entanto, graças à sua resistência e firmeza notáveis, também terão obtido ganhos significativos em termos de apoio e simpatia pela sua causa em todo o mundo – e mais importante ainda – nos países ocidentais, cujos governos vergonhosamente deram todo o seu apoio a guerra genocida de Israel. 

A posição de Israel no mundo foi ainda mais abalada, suas mentiras e seus mitos foram amplamente demolidos. Uma nova geração emergiu com uma nova consciência e conhecimento da justeza da causa palestina. Esta jovem geração continuará a questionar os seus governos sobre os seus fracassos, seu imperialismo e sua cumplicidade em crimes de guerra. 

O mundo está assistindo a uma nova onda de políticas populares alternativas, baseadas na justiça, na libertação e na igualdade. Os dirigentes e militantes deste movimento mundial em constante expansão veem a luta palestina como uma extensão de suas próprias batalhas pela justiça em seu país. 

Os palestinos estarão novamente frente ao desafio de se unirem e capitalizarem essas conquistas. A maioria dos palestinos já não acredita na solução de dois estados, uma vez que o regime sionista tem provado repetidamente suas intenções genocidas e coloniais. O slogan “Palestina livre do rio ao mar” tornar-se-á parte integrante do discurso palestino e as tentativas de criminalizá-lo fracassarão.

Não se trata de um slogan genocida, mas de um nobre objetivo que apela à libertação dos palestinos do apartheid brutal e à libertação da sociedade israelense do sionismo – permitindo que palestinos e judeus vivam juntos numa entidade igualitária.

Site da Campanha Um Estado Democrático:  https://onestatecampaign.org

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